Tomislav
R. Femenick
A
última vez que a vi, ela estava desbotada, meio amarelada e corroída nas
bordas. Hoje não sei por onde anda. Deve estar perdida em algum vão, algum
espaço vazio de alguma gaveta ou armário ou, então, guardada em algum desses
pacotes de coisas do passado que todos nós temos, pacotes esses que aumentam de
tamanho e número na proporção em que acumulamos anos de existência. É apenas
uma fotografia em preto e branco, em tamanho de postal, dessas batidas sem dar
tempo para pose e com tempo de exposição muito curto, um instantâneo, mas que
teve a capacidade de reter a alma de Lauro da Escóssia - Seu Lauro, quando eu
falava com ele, o Velho Lauro, quando eu falava dele.
Foi
tirada de manhã cedo, em sua casa na praia de Tibau. Nela, Seu Lauro estava
despenteado, ainda vestindo pijama e sorrindo, comedidamente. Quando eu lhe
mostrei a foto, ele simplesmente me disse: "É... sou eu. Mas seria melhor
se fosse em tecnicolor". Deu-me as costas, e saiu de porta a fora, atrás
de um comprimido de Antineuválgico Rosado, que foi comprar na farmácia ao lado.
A foto era sim bem ele. Simples, despojado, e comedido. Mas, se olhássemos bem,
ali encontraríamos outras de suas características. Veríamos a sua obstinação,
coragem e teimosia em fazer com que nós, os que compúnhamos o quadro de
repórteres e cronistas de O Mossoroense, escrevêssemos de forma que desse para
o povo ler e entender e, sem "arrodeios". Indo diretos ao assunto,
sem encher lingüiças.
É
nesse campo que está o relevo da figura de Lauro de Escóssia. Certa vez, com o
original de um artigo de Jaime Hipólito na mão, o chamou e perguntou:
"Jaime, o que quer dizer 'emula', essa palavra que você escreveu?"
Depois de Jaime explicar, ele retrucou: "Jaime, eu que escrevo todo dia,
não sei o que diabo é 'emula', como é que você vai querer que os leitores
saibam? Quem ler jornal é o povo". Outra vez foi com Walter Gomes.
"Walter venha cá. Leia o começo de sua crônica de amanhã". Walter
pegou o original das mãos de Seu Lauro e, com voz impostada, começou a ler o
texto que era mais ou menos assim: "Era meio-dia, mas o céu estava escuro,
enegrecido pelas nuvens pesadas que cobriam todo o teto do mundo. O frio
fazia-me bater os dentes...". Aí Seu Lauro interveio. "Walter, meu
filho, onde é que está essa chuva toda? Os nossos leitores são de Mossoró, do
Oeste, onde chuva é pouca, quando há. Quer matar o pessoal de raiva ou
inveja?".
Tive
também o meu quinhão. No início da noitada de um sábado, eu estava em uma festa
na ACDP, quando recebi um telefone de César de Alencar e Toinho Rodrigues,
dizendo que iam mandar um "carro de praça" para que eu fosse até a
casa de um deles, pois tinham um grande furo de reportagem para me dar. Fui.
Era o lançamento da candidatura de Toinho para prefeito - a primeira vez. Peguei
os dados e corri para a redação. A edição do dia seguinte ainda não estava
fechada. Falei com o chefe da gráfica que esperasse um pouco que eu ia escrever
uma matéria importante. Seu Lauro perguntou se não dava para sair na edição de
terça-feira. Eu disse que não e lhe contei o furo. Sua reação foi pronta:
"Venha comigo, você vai ditar a matéria para o linotipista, mas nada de
palavras desnecessárias, nada de adjetivos, somente as palavras essenciais. Um
texto enxuto. Sem a sua mania de encompridar tudo que escreve, pensando que só
as suas matérias são importantes". A notícia foi a manchete da edição.
Grande professor da arte de escrever para jornal.
Em
certo ano, no final dos anos cinqüenta, no período que antecedeu o carnaval o
jornal lançou uma coluna, escrita a "mil mãos", isto é, por todo
mundo, para animar o período momesco. Seu título era "Café? Só,
Sai-te", parodiando o "Café Society", de grande cronista social
carioca Ibraim Sued. Nos primeiros dias, tinha de tudo. Notícias de festas,
baile, clubes que se organizavam, o carnaval de do Ipiranga, da ACDP e de rua,
porém o que terminou dando a tônica do espaço foi o humor. Certo dia saiu uma
notinha despretensiosa, mais ou menos assim: "Comenta-se, em rodas da
sociedade local, que uma das senhoritas de determinado clube carnavalesco não
precisa gastar dinheiro com máscara, ela já é mascarada por natureza". Era
uma nota sem endereço certo, pois simplesmente foi inventada por Lauro Filho.
Por outro lado, a palavra mascarada tanto poderia dizer que a moça era feia como
antipática, cheia de pose.
Entretanto
foi suficiente para ferir os brios do irmão de uma determinada senhorita, que
saiu espalhando pela cidade que, as tantas horas, iria ao jornal tomar
satisfação. O sujeito tinha fama de brabo. Nós ficamos receosos. Só Lauro Filho
quis enfrentá-lo na marra. Perto da hora marcada, Seu Lauro mandou que todo
mundo entrasse e fosse para a oficina, que era como chamávamos a gráfica
naquela época. O fulano chegou e, apoiado no balcão que separava a redação dos
visitantes, falou alto: "Quero falar com quem escreve a coluna de carnaval
e saber se a nota sobre a moça que não precisa usar máscara é sobre a minha
irmã". Prontamente Seu Lauro retrucou: "Por quê? A sua irmã é
feia?". O valentão não teve como responder e foi embora. Grande conhecedor
da alma humana.
Dessa
sua qualidade e capacidade de apaziguar as coisas eu e Walter Gomes usamos e
abusamos, principalmente nos finais das tardes de sábados, quando íamos pedia
"vale" ao Lauro Filho e ele negava, dizendo que o pagamento era no
fim do mês e nós dois que soubéssemos dosar os gastos, pois o jornal não era
banco etc., etc. e tal. Aí nós sabíamos o que fazer. Ficávamos na redação
fazendo uma coisa e outra, até que Lauro Filho fosse embora e os jornaleiros
chegassem para prestar contas das vendas do dia. Seu Lauro era quem recebia o
dinheiro. O "vale" estava garantido. Só tínhamos que nos preparar
para enfrentar Lauro Filho, na segunda-feira. Mas Seu Lauro sempre estava por
perto para ajeitar as coisas. Grande apaziguador de grandes e pequenas
desavenças.
Grande
Velho Lauro. Como foi longe, com aquele seu andar cadenciado, que mais parecia
ginga de malandro. Como via longe, com aqueles óculos que teimavam em
escorregar para a ponta do nariz. Adormecia em cima das resmas de papel, nas
noites em que as linotipos davam uma de "primas-donas" e,
encrenqueiras, não queriam trabalhar. Velho guerreiro que inovou a imprensa
mossoroense, dia-a-dia construindo e reconstruindo um jornal que se sustentava
muito no seu empenho, luta, garra e tenacidade e, também, na visão e no
trabalho do seu filho, o Lauro Filho.
Não
era alto, mas como era grande o Velho Lauro. Jornalista por descendência,
vocação e prazer. Um homem que via a vida com todas suas cores, porque em
tecnicolor é melhor
FONTE JORNAL O MOSSOROENSE
Nenhum comentário:
Postar um comentário